Pelo Tenente Coronel José Mira
Ao abordar o tema em epígrafe poderá pôr-se a questão de saber que
importância tem, para Portugal, o programa de mísseis balísticos da República
Democrática e Popular da Coreia
(vulgo, Coreia do Norte), sabendo-se que Lisboa está a 10219 km de Pyongyang.
Para além da óbvia preocupação de poderem vir a ser desenvolvidos mísseis com
aquela gama de alcances, a região onde se insere a Coreia do Norte é uma
importante parceira comercial de Portugal. Assim, Portugal exportou para a
Coreia do Sul, em 2011, bens no valor de cerca de 54 milhões de euros, para o
Japão, exportou cerca de 192 milhões de euros de mercadorias, para Taiwan cerca
de 62 milhões de euros e para a China cerca de 400 milhões de euros (dados do
INE, via AICEP). Qualquer situação de conflito na península coreana perturbaria
estes fluxos económicos, para além de influenciar negativamente outros aspetos,
a nível mundial.
Estabelecido o anterior, recordaremos que, em 12 de dezembro de 2012, o
Estado norte-coreano atingiu, ao fim de largos anos e várias tentativas
falhadas, um dos mais importantes objetivos do seu programa de desenvolvimento
de veículos de lançamento espacial (segundo os norte-coreanos) ou de mísseis
balísticos (segundo a generalidade dos outros Estados).
Com efeito, o lançamento com sucesso do veículo aerospacial Unha-3 (após uma tentativa falhada em abril
anterior), subsequente separação dos seus três andares e posterior injeção em
órbita de um satélite artificial Kwangmyongsong-3,
configurou a ultrapassagem de um dos mais significativos marcos críticos
tecnológicos (technological bottlenecks) de um tal programa, a correta separação de andares, visando a obtenção
de um míssil intercontinental.
Como seria expectável, os vizinhos da Coreia do Norte observaram aquele
evento com preocupação (mesmo estando já sujeitos, há vários anos, à ameaça
balística de Pyongyang), acompanhados pelos Estados Unidos, agora teoricamente
um pouco mais vulneráveis, e pela generalidade da chamada Comunidade
Internacional.
É de referir que, de facto, as tecnologias e materiais empregues em
mísseis balísticos e aquelas usadas no desenvolvimento de veículos de
lançamento espacial (SLV-Space Launch
Vehicles, vulgo “foguetões” ou “foguetes
espaciais”)
são semelhantes, excluindo-se as associadas às cargas militares.
Sendo certo que não basta proceder a um lançamento vitorioso para se
poder dizer que se possui uma capacidade intercontinental, não deixa de ser
notável que um Estado de médio desenvolvimento tecnológico, aplicando recursos
vultuosíssimos, à sua escala, em face de restrições internacionais e relegando
para segundo plano o bem-estar do seu povo, consiga aceder a um patamar que
apenas grandes potências, estabelecidas ou emergentes, ocupam.
Recorrendo ao texto de artigo recentemente publicado[1] que aborda, entre outros, o programa
norte-coreano de mísseis balísticos, procuraremos caracterizar, nos parágrafos
seguintes, este programa. Assim, iniciou-se o mesmo nos anos 70 do século XX,
com a receção de SCUD provenientes do Egito e que, mediante uma apurada engenharia
reversa (reverse engineering) e
assistência inicial chinesa, permitiu ao “Estado eremita”, não só vir a possuir
no seu arsenal pelo menos 500 Hwasong, derivados do SCUD e 200 No Dongs, como
transformar-se num exportador (ou proliferador) destes mísseis e das suas
tecnologias, dando origem a múltiplos desenvolvimentos no Irão, Líbia, Síria e
Paquistão (com o Irão parece até ter existido um programa combinado para o
desenvolvimento do No Dong 1/Shahab 3). Mesmo alguns países africanos, segundo uma
maciça e mediaticamente famosa fuga de informação, foram alvo das ações
comerciais da Coreia do Norte, neste âmbito.
Outro míssil notável da panóplia norte-coreana é o Musudan (designação
ocidental), com um só andar a propergol líquido, já ao serviço em veículos TEL (Transporter-Erector-Launcher) do “Gabinete de
Orientação da Instrução de Mísseis” (aparentemente, o
operador dos mísseis da Coreia do Norte). Ainda, em 2012, na parada
comemorativa do centenário do nascimento do “Grande
Líder” Kim Il-Sung, foi revelado ao mundo um míssil de
grandes dimensões, conhecido por KN-08, transportado num TEL de 16 rodas,
suscitando dúvidas sobre se se trataria de um míssil de médio alcance ou
intercontinental.
Têm sido desenvolvidos, ainda, mísseis de maiores dimensões, como o Taepo
Dong-1 (consistindo num No Dong 1 como primeiro andar, associado a um Hwasong 6
como segundo andar e ainda a um terceiro andar provido de um motor-foguete de
propergol sólido) enquanto o Taepo Dong-2 parece consistir num primeiro andar
encerrando quatro motores-foguete a propergol líquido dos No Dong, num No Dong
como segundo andar e num terceiro andar também provido de um motor-foguete de
propergol sólido.
Foi com um míssil Taepo Dong 2 (o referido lançador Unha-3, “Galáxia-3”,
segundo tradução da imprensa) que a Coreia do Norte levou ao espaço o satélite
mencionado no primeiro parágrafo (“Estrela Brilhante-3”), contrariando a moratória auto-assumida em março de 2012
sobre o lançamento de mísseis de longo alcance (tal como já o tinha feito com o
lançamento falhado de abril).
Maior constrangimento que aquela moratória são as Resoluções 1718 e 1874,
do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Elas estabelecem diversas medidas
restritivas às transferências de bens e tecnologias de mísseis balísticos de e
para a República Democrática e Popular da Coreia, exigindo ainda o fim de
ensaios envolvendo tecnologias de mísseis balísticos, além de outras
restrições. Tais Resoluções foram mais recentemente reforçadas com a Resolução
2087, de 22 de janeiro do corrente ano, sendo de referir que Portugal presidiu,
ao Comité do Conselho de Segurança
estabelecido na sequência da Resolução 1718 (2006), vulgo “Comité de Sanções
contra a Coreia do Norte”.
Refira-se que os desenvolvimentos norte-coreanos nesta área levaram a
Coreia do Sul a encarar o desenvolvimento de mísseis comparáveis, o que já
mereceu a concordância americana, no que respeita ao aumento de alcances de
mísseis de 300 para 800 quilómetros.
Sublinhe-se ainda, e relacionando os programas balístico e nuclear, que é
mais fácil adaptar eventuais engenhos nucleares ao avião que ao míssil, dadas
as extremas solicitações térmicas e mecânicas de um voo balístico e a
necessidade de miniaturizar, em volume e massa, a carga militar de modo a ser
transportável no míssil, sendo também nesta perspetiva que devem ser analisados
os progressos nucleares da Coreia do Norte.
Que ações têm sido tomadas, ou poderão vir a sê-lo, pela Comunidade
Internacional na contenção deste programa?
Antes de mais, a ação diplomática, que será a primeira das contramedidas
relativas a um qualquer programa de mísseis, no âmbito do controlo de
armamentos e não-proliferação. Neste campo podem inserir-se, por exemplo, as démarches levadas a cabo junto da Coreia
do Norte, em abril de 2012, visando fazê-la desistir da intenção de testar em
voo, como foi já mencionado, o lançador de satélites Unha (para os norte-coreanos) ou o míssil Taepo Dong 2 (para as
potências regionais e EUA). Tais diligências, não tiveram sucesso, podendo alguns contestar
a eficácia das diligências diplomáticas junto da Coreia do Norte, neste campo
como noutros.
Outra contramedida a salientar será o mecanismo legal e administrativo
conhecido por “controlo de exportações”(de
bens e tecnologias sensíveis) já levado a cabo por várias nações relativamente
à Coreia do Norte, desde há anos e de modo mais ou menos discreto -, mas
ultimamente reforçado pelas Resoluções atrás mencionadas. Alguns resultados
terá obtido mas, como é óbvio, não impediu o sucesso norte coreano de dezembro
de 2012, nem outros desenvolvimentos, podendo alegar-se que, simplesmente, os
atrasou.
A fase seguinte de contramedidas a considerar abandona já o âmbito das
ações não-bélicas e inscreve-se definitivamente na esfera militar. Trata-se da
defesa ativa
contra eventuais ataques de mísseis balísticos, consistindo no seu abate, numa
das suas fases de voo, por mísseis antimíssil, antes que aqueles atinjam os
seus alvos. Aquando dos “lançamentos espaciais” norte-coreanos, o governo nipónico pôs em prática a
distribuição de mísseis Patriot pelo seu território, incluindo no centro de
Tóquio e o envio de navios de guerra da classe Kongou, dotados do sistema radar Aegis e armados com mísseis intercetores Standard, para junto das
costas coreanas. É também no Japão que está instalado um dos três radares
antimíssil AN/TPY -2 localizados
fora dos EUA.
Finalmente, como ultima ratio,
ter-se-ia a realização de operações militares visando a neutralização,
pré-lançamento, de mísseis balísticos e seus meios de apoio, no território do
Estado norte
coreano (operações de counterforce), as quais configurariam,
se não existissem já hostilidades declaradas, um casus belli de graves consequências, com a possível exceção de
ações armadas especiais, cobertas ou clandestinas, que consigam camuflar (pelo
menos publicamente) a sua origem.
Recordamos o parágrafo inicial deste texto para opinar que as entidades
estatais portuguesas competentes terão de manter a atenção que dedicam ao
programa de mísseis aqui abordado (e a outros, até mais próximos
geograficamente). Dizemos “entidades”, no plural, pois em cada Estado
interessado, é necessária uma abordagem pluridisciplinar, não se esgotando numa
só entidade a expertise requerida
para tal acompanhamento. Obviamente, impõe-se, neste campo, uma adequada
coordenação interdepartamental.
[1]
Mira, José (2012). “Mísseis Balísticos: Tecnologias,
Programas de Desenvolvimento e Contramedidas” em Revista Militar, Empresa da Revista
Militar, II Século, 64º Volume, Nº 2530 (novembro 2012), pp. 1045-1076
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