domingo, 14 de abril de 2013

A outra Crise dos Mísseis: O programa balístico norte-coreano

Pelo Tenente Coronel José Mira
 
Ao abordar o tema em epígrafe poderá pôr-se a questão de saber que importância tem, para Portugal, o programa de mísseis balísticos da República Democrática e Popular da Coreia (vulgo, Coreia do Norte), sabendo-se que Lisboa está a 10219 km de Pyongyang. Para além da óbvia preocupação de poderem vir a ser desenvolvidos mísseis com aquela gama de alcances, a região onde se insere a Coreia do Norte é uma importante parceira comercial de Portugal. Assim, Portugal exportou para a Coreia do Sul, em 2011, bens no valor de cerca de 54 milhões de euros, para o Japão, exportou cerca de 192 milhões de euros de mercadorias, para Taiwan cerca de 62 milhões de euros e para a China cerca de 400 milhões de euros (dados do INE, via AICEP). Qualquer situação de conflito na península coreana perturbaria estes fluxos económicos, para além de influenciar negativamente outros aspetos, a nível mundial.

Estabelecido o anterior, recordaremos que, em 12 de dezembro de 2012, o Estado norte-coreano atingiu, ao fim de largos anos e várias tentativas falhadas, um dos mais importantes objetivos do seu programa de desenvolvimento de veículos de lançamento espacial (segundo os norte-coreanos) ou de mísseis balísticos (segundo a generalidade dos outros Estados).

Com efeito, o lançamento com sucesso do veículo aerospacial Unha-3 (após uma tentativa falhada em abril anterior), subsequente separação dos seus três andares e posterior injeção em órbita de um satélite artificial Kwangmyongsong-3, configurou a ultrapassagem de um dos mais significativos marcos críticos tecnológicos (technological bottlenecks) de um tal programa, a correta separação de andares, visando a obtenção de um míssil intercontinental.

Como seria expectável, os vizinhos da Coreia do Norte observaram aquele evento com preocupação (mesmo estando já sujeitos, há vários anos, à ameaça balística de Pyongyang), acompanhados pelos Estados Unidos, agora teoricamente um pouco mais vulneráveis, e pela generalidade da chamada Comunidade Internacional.

É de referir que, de facto, as tecnologias e materiais empregues em mísseis balísticos e aquelas usadas no desenvolvimento de veículos de lançamento espacial (SLV-Space Launch Vehicles, vulgofoguetões” ou “foguetes espaciais) são semelhantes, excluindo-se as associadas às cargas militares.

Sendo certo que não basta proceder a um lançamento vitorioso para se poder dizer que se possui uma capacidade intercontinental, não deixa de ser notável que um Estado de médio desenvolvimento tecnológico, aplicando recursos vultuosíssimos, à sua escala, em face de restrições internacionais e relegando para segundo plano o bem-estar do seu povo, consiga aceder a um patamar que apenas grandes potências, estabelecidas ou emergentes, ocupam.

Recorrendo ao texto de artigo recentemente publicado[1] que aborda, entre outros, o programa norte-coreano de mísseis balísticos, procuraremos caracterizar, nos parágrafos seguintes, este programa. Assim, iniciou-se o mesmo nos anos 70 do século XX, com a receção de SCUD provenientes do Egito e que, mediante uma apurada engenharia reversa (reverse engineering) e assistência inicial chinesa, permitiu ao “Estado eremita”, não só vir a possuir no seu arsenal pelo menos 500 Hwasong, derivados do SCUD e 200 No Dongs, como transformar-se num exportador (ou proliferador) destes mísseis e das suas tecnologias, dando origem a múltiplos desenvolvimentos no Irão, Líbia, Síria e Paquistão (com o Irão parece até ter existido um programa combinado para o desenvolvimento do No Dong 1/Shahab 3). Mesmo alguns países africanos, segundo uma maciça e mediaticamente famosa fuga de informação, foram alvo das ações comerciais da Coreia do Norte, neste âmbito.

Outro míssil notável da panóplia norte-coreana é o Musudan (designação ocidental), com um só andar a propergol líquido, já ao serviço em veículos TEL (Transporter-Erector-Launcher) do Gabinete de Orientação da Instrução de Mísseis (aparentemente, o operador dos mísseis da Coreia do Norte). Ainda, em 2012, na parada comemorativa do centenário do nascimento do Grande Líder Kim Il-Sung, foi revelado ao mundo um míssil de grandes dimensões, conhecido por KN-08, transportado num TEL de 16 rodas, suscitando dúvidas sobre se se trataria de um míssil de médio alcance ou intercontinental.

Têm sido desenvolvidos, ainda, mísseis de maiores dimensões, como o Taepo Dong-1 (consistindo num No Dong 1 como primeiro andar, associado a um Hwasong 6 como segundo andar e ainda a um terceiro andar provido de um motor-foguete de propergol sólido) enquanto o Taepo Dong-2 parece consistir num primeiro andar encerrando quatro motores-foguete a propergol líquido dos No Dong, num No Dong como segundo andar e num terceiro andar também provido de um motor-foguete de propergol sólido.

Foi com um míssil Taepo Dong 2 (o referido lançador Unha-3, Galáxia-3, segundo tradução da imprensa) que a Coreia do Norte levou ao espaço o satélite mencionado no primeiro parágrafo (Estrela Brilhante-3), contrariando a moratória auto-assumida em março de 2012 sobre o lançamento de mísseis de longo alcance (tal como já o tinha feito com o lançamento falhado de abril).

Maior constrangimento que aquela moratória são as Resoluções 1718 e 1874, do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Elas estabelecem diversas medidas restritivas às transferências de bens e tecnologias de mísseis balísticos de e para a República Democrática e Popular da Coreia, exigindo ainda o fim de ensaios envolvendo tecnologias de mísseis balísticos, além de outras restrições. Tais Resoluções foram mais recentemente reforçadas com a Resolução 2087, de 22 de janeiro do corrente ano, sendo de referir que Portugal presidiu,  ao Comité do Conselho de Segurança estabelecido na sequência da Resolução 1718 (2006), vulgo “Comité de Sanções contra a Coreia do Norte”.

Refira-se que os desenvolvimentos norte-coreanos nesta área levaram a Coreia do Sul a encarar o desenvolvimento de mísseis comparáveis, o que já mereceu a concordância americana, no que respeita ao aumento de alcances de mísseis de 300 para 800 quilómetros.

Sublinhe-se ainda, e relacionando os programas balístico e nuclear, que é mais fácil adaptar eventuais engenhos nucleares ao avião que ao míssil, dadas as extremas solicitações térmicas e mecânicas de um voo balístico e a necessidade de miniaturizar, em volume e massa, a carga militar de modo a ser transportável no míssil, sendo também nesta perspetiva que devem ser analisados os progressos nucleares da Coreia do Norte.

Que ações têm sido tomadas, ou poderão vir a sê-lo, pela Comunidade Internacional na contenção deste programa?

Antes de mais, a ação diplomática, que será a primeira das contramedidas relativas a um qualquer programa de mísseis, no âmbito do controlo de armamentos e não-proliferação. Neste campo podem inserir-se, por exemplo, as démarches levadas a cabo junto da Coreia do Norte, em abril de 2012, visando fazê-la desistir da intenção de testar em voo, como foi já mencionado, o lançador de satélites Unha (para os norte-coreanos) ou o míssil Taepo Dong 2 (para as potências regionais e EUA). Tais diligências,  não tiveram sucesso, podendo alguns contestar a eficácia das diligências diplomáticas junto da Coreia do Norte, neste campo como noutros.

Outra contramedida a salientar será o mecanismo legal e administrativo conhecido por controlo de exportações(de bens e tecnologias sensíveis) já levado a cabo por várias nações relativamente à Coreia do Norte, desde há anos e de modo mais ou menos discreto -, mas ultimamente reforçado pelas Resoluções atrás mencionadas. Alguns resultados terá obtido mas, como é óbvio, não impediu o sucesso norte coreano de dezembro de 2012, nem outros desenvolvimentos, podendo alegar-se que, simplesmente, os atrasou.

A fase seguinte de contramedidas a considerar abandona já o âmbito das ações não-bélicas e inscreve-se definitivamente na esfera militar. Trata-se da defesa ativa  contra eventuais ataques de mísseis balísticos, consistindo no seu abate, numa das suas fases de voo, por mísseis antimíssil, antes que aqueles atinjam os seus alvos. Aquando dos lançamentos espaciais norte-coreanos, o governo nipónico pôs em prática a distribuição de mísseis Patriot pelo seu território, incluindo no centro de Tóquio e o envio de navios de guerra da classe Kongou, dotados do sistema radar Aegis e armados com mísseis intercetores Standard, para junto das costas coreanas. É também no Japão que está instalado um dos três radares antimíssil AN/TPY-2 localizados fora dos EUA.

Finalmente, como ultima ratio, ter-se-ia a realização de operações militares visando a neutralização, pré-lançamento, de mísseis balísticos e seus meios de apoio, no território do Estado norte coreano (operações de counterforce), as quais configurariam, se não existissem já hostilidades declaradas, um casus belli de graves consequências, com a possível exceção de ações armadas especiais, cobertas ou clandestinas, que consigam camuflar (pelo menos publicamente) a sua origem.

Recordamos o parágrafo inicial deste texto para opinar que as entidades estatais portuguesas competentes terão de manter a atenção que dedicam ao programa de mísseis aqui abordado (e a outros, até mais próximos geograficamente). Dizemos “entidades”, no plural, pois em cada Estado interessado, é necessária uma abordagem pluridisciplinar, não se esgotando numa só entidade a expertise requerida para tal acompanhamento. Obviamente, impõe-se, neste campo, uma adequada coordenação interdepartamental.



[1] Mira, José (2012). Mísseis Balísticos: Tecnologias, Programas de Desenvolvimento e Contramedidas em Revista Militar, Empresa da Revista Militar, II Século, 64º Volume, Nº 2530 (novembro 2012), pp. 1045-1076


 

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